Os Lusíadas Os Lusiadas
by
Luis Vaz de Camoes

Part 1 out of 6








This etext produced by Maria Helena Moreira Rodriques and Victor Calha

This Etext is in Portuguese





Luís Vaz de Camões
Os Lusíadas

Canto Primeiro

1
As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

2
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antígua canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

4
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Porque de vossas águas, Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipoerene.

5
Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.

6
E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antígua liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande;

7
Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada;
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas, e deixou
As que Ele para si na Cruz tomou)

8
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco oriental, e do Gentio,
Que inda bebe o licor do santo rio;

9
Inclinai por um pouco a majestade,
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.

10
Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno:
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de til gente.

11
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas;
Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,
E Orlando, inda que fora verdadeiro,

12
Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,
Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero
A cítara para eles só cobiço.
Pois pelos doze Pares dar-vos quero
Os doze de Inglaterra, e o seu Magriço;
Dou-vos também aquele ilustre Gama,
Que para si de Eneias toma a fama.

13
Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
Ou de César, quereis igual memória,
Vede o primeiro Afonso, cuja lança
Escura faz qualquer estranha glória;
E aquele que a seu Reino a segurança
Deixou com a grande e próspera vitória;
Outro Joane, invicto cavaleiro,
O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.

14
Nem deixarão meus versos esquecidos
Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
Fizeram, só por armas tão subidos,
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco fortíssimo, e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo chora;
Albuquerque terríbil, Castro forte,
E outros em quem poder não teve a morte.

15
E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que pelo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares,
De África as terras, e do Oriente os marços,

16
Em vós os olhos tem o Mouro frio,
Em quem vê seu exício afigurado;
Só com vos ver o bárbaro Gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Tethys todo o cerúleo senhorio
Tem para vós por dote aparelhado;
Que afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja de comprar-vos para genro.

17
Em vós se vêm da olímpica morada
Dos dois avós as almas cá famosas,
Uma na paz angélica dourada,
Outra pelas batalhas sanguinosas;
Em vós esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valerosas;
E lá vos tem lugar, no fim da idade,
No templo da suprema Eternidade.

18
Mas enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Para que estes meus versos vossos sejam;
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser invocado.

19
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas

20
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em concílio glorioso
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu formoso,
Vêm pela Via-Láctea juntamente,
Convocados da parte do Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.

21
Deixam dos sete Céus o regimento,
Que do poder mais alto lhe foi dado,
Alto poder, que só co'o pensamento
Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado.
Ali se acharam juntos num momento
Os que habitam o Arcturo congelado,
E os que o Austro tem, e as partes onde
A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.

22
Estava o Padre ali sublime e dino,
Que vibra os feros raios de Vulcano,
Num assento de estrelas cristalino,
Com gesto alto, severo e soberano.
Do rosto respirava um ar divino,
Que divino tornara um corpo humano;
Com uma coroa e ceptro rutilante,

23
Em luzentes assentos, marchetados
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os outros Deuses todos assentados,
Como a razão e a ordem concertavam:
Precedem os antíguos mais honrados;
Mais abaixo os menores se assentavam;
Quando Júpiter alto, assim dizendo,
C'um tom de voz começa, grave e horrendo:

24
"Eternos moradores do luzente
Estelífero pólo, e claro assento,
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente,
Como é dos fados grandes certo intento,
Que por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

25
"Já lhe foi (bem o vistes) concedido
C'um poder tão singelo e tão pequeno,
Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Toda a terra, que rega o Tejo ameno:
Pois contra o Castelhano tão temido,
Sempre alcançou favor do Céu sereno.
Assim que sempre, enfim, com fama e glória,
Teve os troféus pendentes da vitória.

26
"Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
Que coa gente de Rómulo alcançaram,
Quando com Viriato, na inimiga
Guerra romana tanto se afamaram;
Também deixo a memória, que os obriga
A grande nome, quando alevantaram
Um por seu capitão, que peregrino
Fingiu na cerva espírito divino.

27
"Agora vedes bem que, cometendo
O duvidoso mar num lenho leve,
Por vias nunca usadas, não temendo
De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve:
Que havendo tanto já que as partes vendo
Onde o dia é comprido e onde breve,
Inclinam seu propósito e porfia
A ver os berços onde nasce o dia.

28
"Prometido lhe está do Fado eterno,
Cuja alta Lei não pode ser quebrada,
Que tenham longos tempos o governo
Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.
Nas águas têm passado o duro inverno;
A gente vem perdida e trabalhada;
Já parece bem feito que lhe seja
Mostrada a nova terra, que deseja.

29
"E porque, como vistes, têm passados
Na viagem tão ásperos perigos,
Tantos climas e céus experimentados,
Tanto furor de ventos inimigos,
Que sejam, determino, agasalhados
Nesta costa africana, como amigos.
E tendo guarnecida a lassa frota,
Tornarão a seguir sua longa rota."

30
Estas palavras Júpiter dizia,
Quando os Deuses por ordem respondendo,
Na sentença um do outro diferia,
Razões diversas dando e recebendo.
O padre Baco ali não consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente,
Se lá passar a Lusitana gente.

31
Ouvido tinha aos Fados que viria
Uma gente fortíssima de Espanha
Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Da índia tudo quanto Dóris banha,
E com novas vitórias venceria
A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.
Altamente lhe dói perder a glória,
De que Nisa celebra inda a memória.

32
Vê que já teve o Indo sojugado,
E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso,
Por vencedor da Índia ser cantado
De quantos bebem a água de Parnaso.
Teme agora que seja sepultado
Seu tão célebre nome em negro vaso
D'água do esquecimento, se lá chegam
Os fortes Portugueses, que navegam.

33
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana,
Por quantas qualidades via nela
Da antiga tão amada sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela,
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.

34
Estas causas moviam Citereia,
E mais, porque das Parcas claro entende
Que há de ser celebrada a clara Deia,
Onde a gente belígera se estende.
Assim que, um pela infâmia, que arreceia,
E o outro pelas honras, que pretende,
Debatem, e na porfia permanecem;
A qualquer seus amigos favorecem.

35
Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura
De silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura,
Com ímpeto e braveza desmedida;
Brama toda a montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto levantado,
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

36
Mas Marte, que da Deusa sustentava
Entre todos as partes em porfia,
Ou porque o amor antigo o obrigava,
Ou porque a gente forte o merecia,
De entre os Deuses em pé se levantava:
Merencório no gesto parecia;
O forte escudo ao colo pendurado
Deitando para trás, medonho e irado,

37
A viseira do elmo de diamante
Alevantando um pouco, mui seguro,
Por dar seu parecer, se pôs diante
De Júpiter, armado, forte e duro:
E dando uma pancada penetrante,
Com o conto do bastão no sólio puro,
O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
Um pouco a luz perdeu, como enfiado.

38
E disse assim: "Ó Padre, a cujo império
Tudo aquilo obedece, que criaste,
Se esta gente, que busca outro hemisfério,
Cuja valia, e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério,
Como há já tanto tempo que ordenaste,
Não onças mais, pois és juiz direito,
Razões de quem parece que é suspeito.

39
"Que, se aqui a razão se não mostrasse
Vencida do temor demasiado,
Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Pois que de Luso vem, seu tão privado;
Mas esta tenção sua agora passe,
Porque enfim vem de estâmago danado;
Que nunca tirará alheia inveja
O bem, que outrem merece, e o Céu deseja.

40
"E tu, Padre de grande fortaleza,
Da determinação, que tens tomada,
Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da cousa começada.
Mercúrio, pois excede em ligeireza
Ao vento leve, e à seta bem talhada,
Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
Da índia, e onde a gente se reforme."

41
Como isto disse, o Padre poderoso,
A cabeça inclinando, consentiu
No que disse Mavorte valeroso,
E néctar sobre todos esparziu.
Pelo caminho Lácteo glorioso
Logo cada um dos Deuses se partiu,
Fazendo seus reais acatamentos,
Para os determinados aposentos.

42
Enquanto isto se passa na formosa
Casa etérea do Olimpo onipotente,
Cortava o mar a gente belicosa,
Já lá da banda do Austro e do Oriente,
Entre a costa Etiópica e a famosa
Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente
Queimava então os Deuses, que Tifeu
Com o temor grande em peixes converteu.


43
Tão brandamente os ventos os levavam,
Como quem o céu tinha por amigo:
Sereno o ar, e os tempos se mostravam
Sem nuvens, sem receio de perigo.
O promontório Prasso já passavam,
Na costa de Etiópia, nome antigo,
Quando o mar descobrindo lhe mostrava
Novas ilhas, que em torno cerca e lava.

44
Vasco da Gama, o forte capitão,
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e de altivo coração,
A quem Fortuna sempre favorece,
Para se aqui deter não vê razão,
Que inabitada a terra lhe parece:
Por diante passar determinava;
Mas não lhe sucedeu como cuidava.

45
Eis aparecem logo em companhia
Uns pequenos batéis, que vêm daquela
Que mais chegada à terra parecia,
Cortando o longo mar com larga vela.
A gente se alvoroça, e de alegria
Não sabe mais que olhar a causa dela.
Que gente será esta, em si diziam,
Que costumes, que Lei, que Rei teriam?

46
As embarcações eram, na maneira,
Mui veloces, estreitas e compridas:
As velas, com que, vêm, eram de esteira
Dumas folhas de palma, bem tecidas;
A gente da cor era verdadeira,
Que Faeton, nas terras acendidas,
Ao mundo deu, de ousado, o não prudente:
O Pado o sabe, o Lampetusa o sente.

47
De panos de algodão vinham vestidos,
De várias cores, brancos e listrados:
Uns trazem derredor de si cingidos,
Outros em modo airoso sobraçados:
Da cinta para cima vêm despidos;
Por armas têm adargas o terçados;
Com toucas na cabeça; e navegando,
Anafis sonoros vão tocando.

48
Co'os panos e co'os braços acenavam
As gentes Lusitanas, que esperassem;
Mas já as proas ligeiras se inclinavam
Para que junto às ilhas amainassem.
A ,ente e marinheiros trabalhavam,
Como se aqui os trabalhos se acabassem;
Tomam velas; amaina-se a verga alta;
Da âncora, o mar ferido, em cima salta.

49
Não eram ancorados, quando a gente
Estranha pelas cordas já subia.
No gesto ledos vêm, e humanamente
O Capitão sublime os recebia:
As mesas manda pôr em continente;
Do licor que Lieo prantado havia
Enchem vasos de vidro, e do que deitam,
Os de Faeton queimados nada enjeitam.

50
Comendo alegremente perguntavam,
Pela Arábica língua, donde vinham,
Quem eram, de que terra, que buscavam,
Ou que partes do mar corrido tinham?
Os fortes Lusitanos lhe tornavam
As discretas respostas, que convinham:
"Os Portugueses somos do Ocidente,
Imos buscando as terras do Oriente.

51
"Do mar temos corrido e navegado
Toda a parte do Antártico e Calisto,
Toda a costa Africana rodeado,
Diversos céus e terras temos visto;
Dum Rei potente somos, tão amado,
Tão querido de todos, e benquisto,
Que não no largo mar, com leda fronte,
Mas no lago entraremos de Aqueronte.

52
"E por mandado seu, buscando andamos
A terra Oriental que o Indo rega;
Por ele, o mar remoto navegamos,
Que só dos feios focas se navega.
Mas já razão parece que saibamos,
Se entre vós a verdade não se nega,
Quem sois, que terra é esta que habitais,
Ou se tendes da Índia alguns sinais?"

53
"Somos, um dos das ilhas lhe tornou,
Estrangeiros na terra, Lei e nação;
Que os próprios são aqueles, que criou
A natura sem Lei e sem razão.
Nós temos a Lei certa, que ensinou
O claro descendente de Abraão
Que agora tem do mundo o senhorio,
A mãe Hebréia teve, e o pai Gentio.
Informações. A Ilha de Moçambique.

54
"Esta ilha pequena, que habitamos,
em toda esta terra certa escala
De todos os que as ondas navegamos
De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;
E, por ser necessária, procuramos,
Como próprios da terra, de habitá-la;
E por que tudo enfim vos notifique,
Chama-se a pequena ilha Moçambique.

55
"E já que de tão longe navegais,
Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,
Piloto aqui tereis, por quem sejais
Guiados pelas ondas sabiamente.
Também será bem feito que tenhais
Da terra algum refresco, e que o Regente
Que esta terra governa, que vos veja,
E do mais necessário vos proveja."

56
Isto dizendo, o Mouro se tornou
A seus batéis com toda a companhia;
Do Capitão e gente se apartou
Com mostras de devida cortesia.
Nisto Febo nas águas encerrou,
Co'o carro de cristal, o claro dia,
Dando cargo à irmã, que alumiasse
O largo mundo, enquanto repousasse.

57
A noite se passou na lassa frota
Com estranha alegria, e não cuidada,
Por acharem da terra tão remota
Nova de tanto tempo desejada.
Qualquer então consigo cuida e nota
Na gente e na maneira desusada,
E como os que na errada Seita creram,
Tanto por todo o mundo se estenderam,

58
Da Lua os claros raios rutilavam
Pelas argênteas ondas Neptuninas,
As estrelas os Céus acompanhavam,
Qual campo revestido de boninas;
Os furiosos ventos repousavam
Pelas covas escuras peregrinas;
Porém da armada a gente vigiava,
Como por longo tempo costumava.

59
Mas assim como a Aurora marchetada
Os formosos cabelos espalhou
No Céu sereno, abrindo a roxa entrada
Ao claro Hiperiónio, que acordou,
Começa a embandeirar-se toda a armada,
E de toldos alegres se adornou,
Por receber com festas e alegria
O Regedor das ilhas, que partia.

60
Partia alegremente navegando,
A ver as naus ligeiras Lusitanas,
Com refresco da terra, em si cuidando
Que são aquelas gentes inumanas,
Que, os aposentos cáspios habitando,
A conquistar as terras Asianas
Vieram; e por ordem do Destino,
O Império tomaram a Constantino.

61
Recebe o Capitão alegremente
O Mouro, e toda a sua companhia;
Dá-lhe de ricas peças um presente,
Que só para este efeito já trazia;
Dá-lhe conserva doce, e dá-lhe o ardente
Não usado licor, que dá alegria.
Tudo o Mouro contente bem recebe;
E muito mais contente come e bebe.

62
Está a gente marítima de Luso
Subida pela enxárcia, de admirada,
Notando o estrangeiro modo e uso,
E a linguagem tão bárbara e enleada.
Também o Mouro astuto está confuso,
Olhando a cor, o trajo, e a forte armada;
E perguntando tudo, lhe dizia
"Se por ventura vinham de Turquia?"

63
E mais lhe diz também, que ver deseja
Os livros de sua Lei, preceito eu fé,
Para ver se conforme à sua seja,
Ou se são dos de Cristo, como Crê.
E porque tudo note e tudo veja,
Ao Capitão pedia que lhe dê
Mostra das fortes armas de que usavam,
Quando co'os inimigos pelejavam.

64
Responde o valeroso Capitão
Por um, que a língua escura bem sabia:
"Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
De mim, da Lei, das armas que trazia.
Nem sou da terra, nem da geração
Das gentes enojosas de Turquia:
Mas sou da forte Europa belicosa,
Busco as terras da índia tão famosa.

65
A lei tenho daquele, a cujo império
Obedece o visíbil e ínvisíbil
Aquele que criou todo o Hemisfério,
Tudo o que sente, o todo o insensíbil;
Que padeceu desonra e vitupério,
Sofrendo morte injusta e insofríbil,
E que do Céu à Terra, enfim desceu,
Por subir os mortais da Terra ao Céu.

66
Deste Deus-Homem, alto e infinito,
Os livros, que tu pedes não trazia,
Que bem posso escusar trazer escrito
Em papel o que na alma andar devia.
Se as armas queres ver, como tens dito,
Cumprido esse desejo te seria;
Como amigo as verás; porque eu me obrigo,
Que nunca as queiras ver como inimigo."

67
Isto dizendo, manda os diligentes
Ministros amostrar as armaduras:
Vêm arneses, e peitos reluzentes,
Malhas finas, e lâminas seguras,
Escudos de pinturas diferentes,
Pelouros, espingardas de aço puras,
Arcos, e sagitíferas aljavas,
Partazanas agudas, chuças bravas:

68
As bombas vêm de fogo, e juntamente
As panelas sulfúreas, tão danosas;
Porém aos de Vulcano não consente
Que dêem fogo às bombardas temerosas;
Porque o generoso ânimo e valente,
Entre gentes tão poucas e medrosas,
Não mostra quanto pode, e com razão,
Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.

69
Porém disto, que o Mouro aqui notou,
E de tudo o que viu com olho atento
Um ódio certo na alma lhe ficou,
Uma vontade má de pensamento.
Nas mostras e no gesto o não mostrou;
Mas com risonho e ledo fingimento
Tratá-los brandamente determina,
Até que mostrar possa o que imagina.

70
Pilotos lhe pedia o Capitão,
Por quem pudesse à Índia ser levado;
Diz-lhe que o largo prémio levarão
Do trabalho que nisso for tomado.
Promete-lhos o Mouro, com tenção
De peito venenoso, e tão danado,
Que a morte, se pudesse, neste dia,
Em lugar de pilotos lhe daria.


71
Tamanho o ódio foi, e a má vontade,
Que aos estrangeiros súbito tomou,
Sabendo ser sequazes da verdade,
Que o Filho de David nos ensinou.
ó segredos daquela Eternidade,
A quem juízo algum nunca alcançou!
Que nunca falte um pérfido inimigo
Aqueles de quem foste tanto amigo!

72
Partiu-se Disto enfim coa companhia,
Das naus o falso Mouro despedido,
Com enganosa e grande cortesia,
Com gesto ledo a todos, e fingido.
Cortaram os batéis a curta via
Das águas de Neptuno, e recebido
Na terra do obsequente ajuntamento
Se foi o Mouro ao cógnito aposento.

73
Do claro assento etóreo o grão Tebano,
Que da paternal coxa foi nascido,
Olhando o ajuntamento Lusitano
Ao Mouro ser molesto e avorrecido,
No pensamento cuida um falso engano,
Com que seja de todo destruído.
E enquanto isto só na alma imaginava,
Consigo estas palavras praticava:

74
"Está do fado já determinado,
Que tamanhas vitórias, tão famosas,
Hajam os Portugueses alcançado
Das Indianas gentes belicosas.
E eu só, filho do Padre sublimado,
Com tantas qualidades generosas,
Hei de sofrer que o fado favoreça
Outrem, por quem meu nome se escureça?

75
"Já quiseram os Deuses que tivesse
O filho de Filipo nesta parte
Tanto poder, que tudo submetesse
Debaixo de seu jugo o fero Marte.
Mas há-se de sofrer que o fado desse
A tão poucos tamanho esforço e arte,
Que eu co'o grão Macedónio, e o Romano,
Demos lugar ao nome Lusitano?

76
"Não será assim, porque antes que chegado
Seja este Capitão, astutamente
Lhe será tanto engano fabricados
Que nunca veja as partes do Oriente.
Eu descerei à Terra, e o indignado
Peito revolverei da Maura gente;
Porque sempre por via irá direita
Quem do oportuno tempo se aproveita."

77
Isto dizendo, irado e quase insano,
Sobre a terra africana descendeu,
Onde vestindo a forma e gesto humano,
Para o Prasso sabido se moveu.
E por melhor tecer o astuto engano,
No gesto natural se converteu
Dum Mouro, em Moçambique conhecido
Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido.

78
E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas
A sua falsidade acomodadas,
Lhe diz como eram gentes roubadoras,
Estas que ora de novo são chegadas;
Que das nações na costa moradoras
Correndo a fama veio que roubadas
Foram por estes homens que passavam,
Que com pactos de paz sempre ancoravam.

79
E sabe mais, lhe diz, como entendido
Tenho destes cristãos sanguinolentos,
Que quase todo o mar têm destruído
Com roubos, com incêndios violentos;
E trazem já de longe engano urdido
Contra nós; e que todos seus intentos
São para nos matarem e roubarem,
E mulheres e filhos cativarem.

80
"E também sei que tem determinado
De vir por água a terra muito cedo
O Capitão dos seus acompanhado,
Que da tensão danada nasce o medo.
Tu deves de ir também co'os teus armado
Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;
Porque, saindo a gente descuidada,
Cairão facilmente na cilada.

81
"E se inda não ficarem deste jeito
Destruídos, ou mortos totalmente
Eu tenho imaginado no conceito
Outra manha e ardil, que te contente:
Manda-lhe dar piloto, que de jeito
Seja astuto no engano, e tão prudente,
Que os leve aonde sejam destruídos,
Desbaratados, mortos, ou perdidos."

82
Tanto que estas palavras acabou,
O Mouro, nos tais casos sábio e velho,
Os braços pelo colo lhe lançou,
Agradecendo muito o tal conselho;
E logo nesse instante concertou
Para a guerra o belígero aparelho,
Para que ao Português se lhe tornasse
Em roxo sangue a água, que buscasse.

83
E busca mais, para o cuidado engano,
Mouro, que por piloto à nau lhe mande,
Sagaz, astuto, e sábio em todo o dano,
De quem fiar-se possa um feito grande.
Diz-lhe que acompanhando o Lusitano,
Por tais costas e mares com ele ande,
Que, se daqui escapar, que lá diante
Vá cair onde nunca se alevante.

84
Já o raio Apolíneo visitava
Os montes Nabatêos acendido,
Quando o Gama, colos seus determinava
De vir por água a terra apercebido.
A gente nos batéis se concertava,
Como se fosse o engano já sabido:
Mas pode suspeitar-se facilmente,
Que o coração pressago nunca mente.

85
E mais também mandado tinha a terra,
De antes, pelo piloto necessário,
E foi-lhe respondido em som de guerra,
Caso do que cuidava mui contrário;
Por isto, e porque sabe quanto erra
Quem se crê de seu pérfido adversário,
Apercebido vai como podia,
Em três batéis somente que trazia.

86
Mas os Mouros que andavam pela praia,
Por lhe defender a água desejada,
Um de escudo embraçado e de azagaia,
Outro de arco encurvado e seta ervada,
Esperam que a guerreira gente saia,
Outros muitos já postos em cilada.
E, porque o caso leve se lhe faça,
Põem uns poucos diante por negaça,

87
Andam pela ribeira alva, arenosa,
Os belicosos Mouros acenando
Com a adarga e co'a hástia perigosa,
Os fortes Portugueses incitando.
Não sofre muito a gente generosa
Andar-lhe os cães os dentes amostrando.
Qualquer em terra salta tão ligeiro,
Que nenhum dizer pode que é primeiro.

88
Qual no corro sanguino o ledo amante,
Vendo a formosa dama desejada,
O touro busca, e pondo-se diante,
Salta, corre, sibila, acena, e brada,
Mas o animal atroce, nesse instante,
Com a fronte cornígera inclinada,
Bramando duro corre, e os olhos cerra,
Derriba, fere e mata, e põe por terra:

89
Eis nos batéis o fogo se levanta
Na furiosa e dura artilharia,
A plúmbea péla mata, o brado espanta,
Ferido o ar retumba e assovia:
O coração dos Mouros se quebranta,
O temor grande o sangue lhe resfria.
Já foge o escondido de medroso,
E morre o descoberto aventuroso.

90
Não se contenta a gente Portuguesa,
Mas seguindo a vitória estrui e mata;
A povoação, sem muro e sem defesa,
Esbombardeia, acende e desbarata.
Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,
Que bem cuidou comprá-la mais barata;
Já blasfema da guerra, e maldizia,
O velho inerte, e a mãe que o filho cria.

91
Fugindo, a seta o Mouro vai tirando
Sem força, de covarde e de apressado,
A pedra, o pau, e o canto arremessando;
Dá-lhe armas o furor desatinado.
Já a ilha e todo o mais desemparando,
A terra firme foge amedrontado;
Passa e corta do mar o estreito braço,
Que a ilha em torno cerca, em pouco espaço

92
Uns vão nas almadias carregadas,
Um corta o mar a nado diligente,
Quem se afoga nas ondas encurvadas,
Quem bebe o mar, e o deita juntamente.
Arrombam as miúdas bombardadas
Os pangaios subtis da bruta gente:
Desta arte o Português enfim castiga
A vil malícia, pérfida, inimiga.

93
Tornam vitoriosos para a armada,
Co'o despojo da guerra e rica presa,
E vão a seu prazer fazer aguada,
Sem achar resistência, nem defesa.
Ficava a Maura gente magoada,
No ódio antigo mais que nunca acesa;
E vendo sem vingança tanto dano,
Somente estriba no segundo engano.

94
Pazes cometer manda arrependido
O Regedor daquela iníqua terra,
Sem ser dos Lusitanos entendido,
Que em figura de paz lhe manda guerra;
Porque o piloto falso prometido,
Que toda a má tenção no peito encerra,
Para os guiar à morte lhe mandava,
Como em sinal das pazes que tratava.

95
O Capitão, que já lhe então convinha
Tornar a seu caminho acostumado,
Que tempo concertado e ventos tinha
Para ir buscar o Indo desejado,
Recebendo o piloto, que lhe vinha,
Foi dele alegremente agasalhado;
E respondendo ao mensageiro a tento,
As velas manda dar ao largo vento.

96
Desta arte despedida a forte armada,
As ondas de Anfitrite dividia,
Das filhas de Nereu acompanhada,
Fiel, alegre e doce companhia.
O Capitão, que não caía em nada
Do enganoso ardil, que o Mouro urdia,
Dele mui largamente se informava
Da Índia toda, e costas que passava.

97
Mas o Mouro, instruído nos enganos
Que o malévolo Baco lhe ensinara,
De morte ou cativeiro novos danos,
Antes que à Índia chegue, lhe prepara:
Dando razões dos portos Indianos,
Também tudo o que pede lhe declara,
Que, havendo por verdade o que dizia,
De nada a forte gente se temia.

98
E diz-lhe mais, com o falso pensamento
Com que Sinon os Frígios enganou:
Que perto está uma ilha, cujo assento
Povo antigo cristão sempre habitou.
O Capitão, que a tudo estava a tento,
Tanto com estas novas se alegrou,
Que com dádivas grandes lhe rogava,
Que o leve à terra onde esta gente estava.

99
O mesmo o falso Mouro determina,
Que o seguro Cristão lhe manda e pede;
Que a ilha é possuída da malina
Gente que segue o torpe Mahamede.
Aqui o engano e morte lhe imagina,
Porque em poder e forças muito excede
A Moçambique esta ilha, que se chama
Quíloa, mui conhecida pela fama.

100
Para lá se inclinava a leda frota;
Mas a Deusa em Citere celebrada,
Vendo como deixava a certa rota
Por ir buscar a morte não cuidada,
Não consente que em terra tão remota
Se perca a gente dela tanto amada.
E com ventos contrários a desvia
Donde o piloto falso a leva e guia.

101
Mas o malvado Mouro, não podendo
Tal determinação levar avante,
Outra maldade iníqua cometendo,
Ainda em seu propósito constante,
Lhe diz que, pois as águas discorrendo
Os levaram por força por diante,
Que outra ilha tem perto, cuja gente
Eram Cristãos com Mouros juntamente.

102
Também nestas palavras lhe mentia,
Como por regimento enfim levava,
Que aqui gente de Cristo não havia,
Mas a que a Mahamede celebrava.
O Capitão, que em tudo o Mouro cria,
Virando as velas, a ilha demandava;
Mas, não querendo a Deusa guardadora,
Não entra pela barra, e surge fora.

103
Estava a ilha à terra tão chegada,
Que um estreito pequeno a dividia;
Uma cidade nela situada,
Que na fronte do mar aparecia,
De nobres edifícios fabricada,
Como por fora ao longe descobria,
Regida por um Rei de antiga idade:
Mombaça é o nome da ilha e da cidade.

104
E sendo a ela o Capitão chegado,
Estranhamente ledo, porque espera
De poder ver o povo batizado,
Como o falso piloto lhe dissera,
Eis vêm batéis da terra com recado
Do Rei, que já sabia a gente que era:
Que Baco muito de antes o avisara,
Na forma doutro Mouro, que tomara.

105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaixo o veneno vem coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos!
Ó caminho de vida nunca certo:
Que aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!

106
No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?


Canto Segundo

1
Já neste tempo o lúcido Planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo,
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
As naus, que pouco havia que ancoraram.

2
Dentre eles um, que traz encomendado
O mortífero engano, assim dizia:
"Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino e salsa via,
O Rei que manda esta ilha, alvoroçado
Da vinda tua, tem tanta alegria,
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te, e do necessário reformar-te.

3
"E porque está em extremo desejoso
De te ver, como cousa nomeada,
Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra, tu com toda armada:
E porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente débil e cansada,
Diz que na terra podes reformá-la,
Que a natureza obriga a desejá-la.

4
"E se buscando vás mercadoria
Que produze o aurífero Levante,
Canela, cravo, ardente especiaria,
Ou droga salutífera e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rígido diamante,
Daqui levarás tudo tão sobejo
Com que faças o fim a teu desejo."

5
Ao mensageiro o Capitão responde
As palavras do Rei agradecendo:
E diz que, porque o Sol no mar se esconde,
Não entra para dentro, obedecendo;
Porém que, como a luz mostrar por onde
Vá sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá sem receio seu mandado,
Que a mais por tal senhor está obrigado.

6
Pergunta-lhe depois, se estão na terra
Cristãos, como o piloto lhe dizia;
O mensageiro astuto, que não erra,
Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra
Toda a suspeita e cauta fantasia;
Por onde o Capitão seguramente
Se fia da infiel e falsa gente.

7
E de alguns que trazia condenados
Por culpas e por feitos vergonhosos,
Por que pudessem ser aventurados
Em casos desta sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes, ensaiados,
Por que notem dos Mouros enganosos
A cidade e poder, e por que vejam
Os Cristãos, que só tanto ver desejam.

8
E por estes ao Rei presentes manda,
Por que a boa vontade, que mostrava,
Tenha firme, segura, limpa e branda;
A qual bem ao contrário em tudo estava.
Já a companhia pérfida e nefanda
Das naus se despedia e o mar cortava:
Foram com gestos ledos e fingidos,
Os dous da frota em terra recebidos.

9
E depois que ao Rei apresentaram,
Co'o recado, os presentes que traziam,
A cidade correram, e notaram
Muito menos daquilo que queriam;
Que os Mouros cautelosos se guardaras
De lhes mostrarem tudo o que pediam:
Que onde reina a malícia, está o receio,
Que a faz imaginar no peito alheio.

10
Mas aquele que sempre a mocidade
Tem no rosto perpétua, e foi nascido
De duas mães, que urdia a falsidade
Por ver o navegante destruído,
Estava numa casa da cidade,
Com rosto humano e hábito fingido,
Mostrando-se Cristão, e fabricava
Um altar sumptuoso, que adorava.

11
Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura:
A cândida pombinha debuxada
Sobre a única Fénix, Virgem pura;
A companhia santa está pintada
Dos doze, tão torvados na figura,
Como os que, só das línguas que caíram,
De fogo, várias línguas referiram.

12
Aqui os dous companheiros conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o mundo governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
Na Pancaia odorífera, queimava
O Tioneu, e assim por derradeiro
O falso Deus adora o verdadeiro.

13
Aqui foram de noite agasalhados,
Com todo o bom e honesto tratamento,
Os dous Cristãos, não vendo que enganados
Os tinha o falso e santo fingimento.
Mas assim como os raios espalhados
Do Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu no rúbido horizonte
Da moça de Titão a roxa fronte,

14
Tornam da terra os Mouros co'o recado
Do Rei, para que entrassem, e consigo
Os dous que o Capitão tinha mandado,
A quem se o Rei mostrou sincero amigo;
E sendo o Português certificado
De não haver receio de perigo,
E que gente de Cristo em terra havia,
Dentro no salso rio entrar queria.

15
Dizem-lhe os que mandou, que em terra
Sacras aras e sacerdote sinto; viram
Que ali se agasalharam o dormiram,
Enquanto a luz cobriu o escuro manto;
E que no Rei e gentes não sentiram
Senão contentamento e gosto tanto,
Que não podia certo haver suspeita
Numa mostra tão clara e tão perfeita.

16
Com isto o nobre Gama recebia
Alegremente os Mouros que subiam;
Que levemente um ânimo se fia
De mostras, que tão certas pareciam.
A nau da gente pérfida se enchia,
Deixando a bordo os barcos que traziam.
Alegres vinham todos, porque crêm
Que a presa desejada certa têm.

17
Na terra, cautamente aparelhavam
Armas e munições que, como vissem
Que no rio os navios ancoravam,
Neles ousadamente se subissem;
E, nesta treição determinavam
Que os de Luso de todo destruíssem,
E que incautos pagassem deste jeito
O mal que em Moçambique tinham feito.

18
As âncoras tenaces vão levando
Com a náutica grita costumada;
Da proa as velas sós ao vento dando
Inclinam para a barra abalizada.
Mas a linda Ericina, que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a cilada grande, e tão secreta,
Voa do Céu ao mar como uma seta.

19
Convoca as alvas filhas de Nereu,
Com toda a mais cerúlea companhia,
Que, porque no salgado mar nasceu,
Das águas o poder lhe obedecia.
E propondo-lhe a causa a que desceu,
Com todas juntamente se partia,
Para estorvar que a armada não chegasse

20
Já na água erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas branca escuma;
Cloto eo'o peito corta e atravessa
Com mais furor o mar do que costuma.
Salta Nise, Nerine se arremessa
Por cima da água crespa, em força suma.
Abrem caminho as ondas encurvadas
De temor das Nereidas apressadas.

21
Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,
Vai a linda Dione furiosa;
Não sente quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão formosa.
Já chegam perto donde o vento teso
Enche as velas da frota belicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse instante
As naus ligeiras, que iam por diante.

22
Põe-se a Deusa com outras em direito
Da proa capitaina, e ali fechando
O caminho da barra, estão de jeito,
Que em vão assopra o vento, a vela inchando.
Põem no madeiro duro o brando peito,
Para detrás a forte nau forçando;
Outras em derredor levando-a estavam,
E da barra inimiga a desviavam.

23
Quais para a cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande acomodado,
As forças exercitam, de inimigas
Do inimigo inverno congelado;
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali mostram vigor nunca esperado:
Tais andavam as Ninfas estorvando
A gente Portuguesa o fim nefando.

24
Torna para detrás a nau forçada,
Apesar dos que leva, que gritando
Mareiam velas; ferve a gente irada,
O leme a um bordo e a outro atravessando;
O mestre astuto em vão da popa brada,
Vendo como diante ameaçando
Os estava um marítimo penedo,
Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.

25
A celeuma medonha se alevanta
No rudo marinheiro que trabalha;
O grande estrondo a Maura gente espanta,
Como se vissem hórrida batalha;
Não sabem a razão de fúria tanta,
Não sabem nesta pressa quem lhe valha;
Cuidam que seus enganos são sabidos,
E que hão de ser por isso aqui punidos.

26
Ei-los subitamente se lançavam
A seus batéis velozes que traziam;
Outros em cima o mar alevantavam,
Saltando n'água, a nado se acolhiam;
De um bordo e doutro súbito saltavam,
Que o medo os compelia do que viam;
Que antes querem ao mar aventurar-se
Que nas mãos inimigas entregar-se.

27
Assim como em selvática alagoa
As rãs, no tempo antigo Lícia gente,
Se sentem por ventura vir pessoa,
Estando fora da água incautamente,
Daqui e dali saltando, o charco soa,
Por fugir do perigo que se sente,
E acolhendo-se ao couto que conhecem,
Sós as cabeças na água lhe aparecem:

28
Assim fogem os Mouros; e o piloto,
Que ao perigo grande as naus guiara,
Crendo que seu engano estava noto,
Também foge, saltando na água amara.
Mas, por não darem no penedo imoto,
Onde percam a vida doce e cara,
A âncora solta logo a capitaina,
Qualquer das outras junto dela amaina.

29
Vendo o Gama, atentado, a estranheza
Dos Mouros, não cuidada, e juntamente
O piloto fugir-lhe com presteza,
Entende o que ordenava a bruta gente;
E vendo, sem contraste e sem braveza
Dos ventos, ou das águas sem corrente,
Que a nau passar avante não podia,
Havendo-o por milagre, assim dizia:

30
"Ó caso grande, estranho e não cuidado,
Ó milagre claríssimo e evidente,
Ó descoberto engano inopinado,
Ó pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo sabiamente,
Se lá de cima a Guarda soberana
Não acudir à fraca força humana?

31
"Bem nos mostra a divina Providência
Destes portos a pouca segurança;
Bem claro temos visto na aparência,
Que era enganada a nossa confiança.
Mas pois saber humano nem prudência
Enganos tão fingidos não alcança,
Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado
De quem sem ti não pode ser guardado!

32
"E se te move tanto a piedade
Desta mísera gente peregrina,
Que só por tua altíssima bondade,
Da gente a salvas pérfida e malina,
Nalgum porto seguro de verdade
Conduzir-nos já agora determina,
Ou nos amostra a terra que buscamos,
Pois só por teu serviço navegamos."

33
Ouviu-lhe essas palavras piedosas
A formosa Dione, e comovida,
Dentre as Ninfas se vai, que saudosas
Ficaram desta súbita partida.
Já penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera recebida
Avante passa, e lá no sexto Céu,
Para onde estava o Padre, se moveu.

34
E como ia afrontada do caminho,
Tão formosa no gesto se mostrava,
Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho,
E tudo quanto a via namorava.
Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
Uns espíritos vivos inspirava,
Com que os Pólos gelados acendia,
E tornava do Fogo a esfera fria.

35
E por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e eriça,
Se lhe apresenta assim como ao Troiano,
Na selva Idea, já se apresentara.
Se a vira o caçador, que o vulto humano
Perdeu, vendo Diana na água clara,
Nunca os famintos galgos o mataram,
Que primeiro desejos o acabaram.

36
Os crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava, e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Menino as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

37
C'um delgado sendal as partes cobre,
De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo esconde, nem descobre,
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, para que o desejo acenda o dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

38
E mostrando no angélico semblante
Co'o riso uma tristeza misturada,
Como dama que foi do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se aqueixa e se ri num mesmo instante,
E se torna entre alegre magoada,
Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala,
Mais mimosa que triste ao Padre fala:

39
"Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,
Que, para as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afábil e amoroso,
Posto que a algum contrário lhe pesasse;
Mas, pois que contra mim te vejo iroso,
Sem que to merecesse, nem te errasse,
Faça-se como Baco determina;
Assentarei enfim que fui mofina.

40
"Este povo que é meu, por quem derramo
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
Sendo tu tanto contra meu desejo!
Por ele a ti rogando choro e bramo,
E contra minha dita enfim pelejo.
Ora pois, porque o amo é mal tratado,
Quero-lhe querer mal, será guardado.

41
"Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,
Que pois eu fui..." E nisto, de mimosa,
O rosto banha em lágrimas ardentes,
Como co'o orvalho fica a fresca rosa.
Calada um pouco, como se entre os dentes
Se lhe impedira a fala piedosa,
Torna a segui-la; e indo por diante,
Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

42
E destas brandas mostras comovido,
Que moveram de um tigre o peito duro,
Co'o vulto alegre, qual do Céu subido,
Torna sereno e claro o ar escuro,
As lágrimas lhe alimpa, e acendido
Na face a beija, e abraça o colo puro;
De modo que dali, se só se achara,
Outro novo Cupido se gerara.

43
E co'o seu apertando o rosto amado,
Que os soluços e lágrimas aumenta,
Como menino da ama castigado,
Que quem no afaga o choro lhe acrescente,
Por lhe pôr em sossego o peito irado,
Muitos casos futuros lhe apresenta.
Dos fados as entranhas revolvendo,
Desta maneira enfim lhe está dizendo:

44
"Formosa filha minha, não temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos,
Nem que ninguém comigo possa mais,
Que esses chorosos olhos soberanos;
Que eu vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se Gregos e Romanos,
Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de fazer nas partes do Oriente.

45
"Que se o facundo Ulisses escapou
De ser na Ogígia ilha eterno escravo,
E se Antenor os seios penetrou
Ilíricos e a fonte de Timavo;
E se o piedoso Eneias navegou
De Cila e de Caríbdis o mar bravo,
Os vossos, mores cousas atentando,
Novos mundos ao mundo irão mostrando.

46
"Fortalezas, cidades e altos muros,
Por eles vereis, filha, edificados;
Os Turcos belacíssimos e duros,
Deles sempre vereis desbaratados.
Os Reis da índia, livres e seguros,
Vereis ao Rei potente sojugados;
E por eles, de tudo enfim senhores,
Serão dadas na terra leis melhores.

47
"Vereis este, que agora pressuroso
Por tantos medos o Indo vai buscando,
Tremer dele Neptuno, de medroso
Sem vento suas águas encrespando.
Ó caso nunca visto e milagroso,
Que trema e ferva o mar, em calma estando!
Ó gente forte e de altos pensamentos,
Que também dela hão medo os Elementos!

48
"Vereis a terra, que a água lhe tolhia,
Que inda há-de ser um porto mui decente,
Em que vão descansar da longa via
As naus que navegarem do Ocidente.
Toda esta costa enfim, que agora urdia
O mortífero engano, obediente
Lhe pagará tributos, conhecendo
Não poder resistir ao Luso horrendo.

49
"E vereis o mar Roxo, tão famoso,
Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;
Vereis de Ormuz o Reino poderoso
Duas vezes tomado e sojugado.
Ali vereis o Mouro furioso
De suas mesmas setas traspassado:
Que quem vai contra os vossos, claro veja
Que, se resiste, contra si peleja.

50
"Vereis a inexpugnábil Dio forte,
Que dous cercos terá, dos vossos sendo.
Ali se mostrará seu preço e sorte,
Feitos de armas grandíssimos fazendo.
Invejoso vereis o grão Mavorte
Do peito Lusitano fero e horrendo:
Do Mouro ali verão que a voz extrema
Do falso Mahamede ao Céu blasfema.

51
"Goa vereis aos Mouros ser tomada,
A qual virá depois a ser senhora
De todo o Oriente, e sublimada
Co'os triunfos da gente vencedora.
Ali soberba, altiva, e exalçada,
Ao Gentio, que os ídolos adora,
Duro freio porá, e a toda a terra
Que cuidar de fazer aos vossos guerra.

52
"Vereis a fortaleza sustentar-se
De Cananor, com pouca força e gente;
E vereis Calecu desbaratar-se,
Cidade populosa e tão potente:
E vereis em Cochim assinalar-se
Tanto um peito soberbo e insolente,
Que cítara jamais cantou vitória,
Que assim mereça eterno nome e glória.

53
"Nunca com Marte instructo e furioso,
Se viu ferver Leucate, quando Augusto
Nas civis Actias guerras animoso,
O Capitão venceu Romano injusto,
Que dos povos da Aurora, e do famoso
Nilo, e do Bactra Cítico e robusto
A vitória trazia, e presa rica,
Preso na Egípcia linda e nego pudica.

54
Como vereis o mar fervendo aceso
Colos incêndios dos vossos pelejando,
Levando o Idololatra, e o Mouro preso,
De nações diferentes triunfando.
E sujeita a rica Áurea Quersoneso,
Até ao longínquo China navegando,
E as ilhas mais remotas do Oriente,
Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.

55
"De modo, filha minha, que de jeito
Amostrarão esforço mais que humano,
Que nunca se verá tão forte peito,
Do Gangético mar ao Gaditano,
Nem das Boreais ondas ao Estreito,
Que mostrou o agravado Lusitano,
Posto que em todo o mundo, de afrontados,
Ressuscitassem todos os passados."

56
Como isto disse, manda o consagrado
Filho de Maia à Terra, por que tenha
Um pacífico porto o sossegado,
Para onde sem receio a frota venha;
F, para que em Mombaça, aventurado,
O forte Capitão se não detenha,
Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostra
A terra, onde quieto repousasse.

57
Já pelo ar o Cileneu voava;
Com as asas nos pés à Terra desce;
Sua vara fatal na mão levava,
Com que os olhos cansados adormece:
Com esta, as tristes almas revocava
Do Inferno, e o vento lhe obedece.
Na cabeça o galero costumado.
E desta arte a Melinde foi chegado.

58
Consigo a Fama leva, por que diga
Do Lusitano o preço grande e raro,
Que o nome ilustre a um certo amor obriga
E faz, a quem o tem, amado e caro.
Desta arte vai fazendo a gente amiga,
Co rumor famosíssimo, e perclaro.
Já Melinde em desejos arde todo
De ver da gente forte o gesto e modo.

59
Dali para Mombaça logo parte,
Aonde as naus estavam temerosas,
Para que à gente mande que se aparte
Da barra amiga e terras suspeitosas:
Porque mui pouco val esforço e arte,
Contra infernais vontades enganosas;
Pouco val coração, astúcia e siso,
Se lá dos Céus não vem celeste aviso.

60
No feio caminho a noite tinha anelado,
E, as estrelas no Céu, coa luz alhea,
Tinham o largo Mundo alumiado;
E só co'o sono a gente se recreia.
O Capitão ilustre, já cansado
De vigiar a noite que arreceia,
Breve repouso então aos olhos dava,
A outra gente a quartos vigiava;

61
Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,
Dizendo: "Fuge, fuge, Lusitano,
Da cilada que o Rei malvado tece,
Por te trazer ao fim, e extremo dano;
Fuge, que o vento, e o Céu te favorece;
Sereno o tempo tens e o Oceano,
E outro Rei mais amigo, noutra parte,
Onde podes seguro agasalhar-te.

62
"Não tens aqui senão aparelhado
O hospício que o cru Diomedes dava,
Fazendo ser manjar acostumado
De cavalos a gente que hospedava;
As aras de Busíris infamado,
Onde os hóspedes tristes imolava,
Terás certas aqui, se muito esperas.
Fuge das gentes pérfidas e feras.

63
"Vai-te ao longo da costa discorrendo,
E outra terra acharás de mais verdade,
Lá quase junto donde o Sol ardendo
Iguala o dia e noite em quantidade;
Ali tua frota alegre recebendo
Um Rei, com muitas obras de amizade,,
Gasalhado seguro te daria,
E, para a índia, certa e sábia guia."

64
Isto Mercúrio disse, e o sono leva
Ao Capitão, que com mui grande espanto
Acorda, e vê ferida a escura treva
De uma súbita luz e raio santo.
E vendo claro quanto lhe releva
Não se deter na terra iníqua tanto,
Com novo espírito ao mestre seu mandava
Que as velas desse ao vento que assopravam.

65
"Dai velas, disse, dai ao largo vento,
Que o Céu nos favorece e Deus o manda;
Que um mensageiro vi do claro assento
Que só em favor de nossos passos anda."
Alevanta-se nisto o movimento
Dos marinheiros, de uma e de outra banda;
Levam gritando as âncoras acima,
Mostrando a ruda força, que se estima.

66
Neste tempo, que as âncoras levavam,
Na sombra escura os Mouros escondidos
Mansamente as amarras lhe cortavam,
Por serem, dando à costa, destruídos;
Mas com vista de linces vigiavam
Os Portugueses, sempre apercebidos.
Eles, como acordados os sentiram,
Voando, e não remando, lhe fugiram.

67
Mas já as agudas proas apartando
Iam as vias húmidas de argento;
Assopra-lhe galerno o vento, e brando,
Com suave e seguro movimento.
Nos perigos passados vão falando,
Que mal se perderão do pensamento
Os casos grandes, donde em tanto aperto
A vida em salvo escapa por acerto.

68
Tinha uma volta dado o Sol ardente
E noutro começava, quando viram
Ao longe deus navios, brandamente
Co'os ventos navegando, que respiram:
Porque haviam de ser da Maura gente,
Para eles arribando, as velas viram:
Um, de temor do mal que arreceava,
Por se salvar a gente à costa dava.

69
Não é o outro que fica tão manhoso;
Mas nas mãos vai cair do Lusitano,
Sem o rigor de Marte furioso,
E sem a fúria horrenda de Vulcano;
Que como fosse débil e medroso
Da pouca gente o fraco peito humano,
Não teve resistência; e se a tivera,
Mais dano resistindo recebera.

70
E como o Gama muito desejasse
Piloto para a Índia que buscava,
Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;
Mas não lhe sucedeu como cuidava,
Que nenhum deles há que lhe ensinasse
A que parte dos céus a Índia estava;
Porém dizem-lhe todos, que tem perto
Melinde, onde achará piloto certo.

71
Louvam do Rei os Mouros a bondade,
Condição liberal, sincero peito,
Magnificência grande e humanidade,
Com partes de grandíssimo respeito.
O Capitão o assela por verdade,
Porque já lhe dissera, deste jeito,
Cileneu em sonhos; e partia
Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

72
Era no tempo alegre, quando entrava
No roubador de Europa a luz Febeia,
Quando um e outro corno lhe aquentava,
E Flora derramava o de Amalteia:
A memória do dia renovava
O pressuroso Sol, que o Céu rodeia,
Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,
O selo pôs a quanto tinha feito;

73
Quando chegava a frota àquela parte,
Onde o Reino Melinde já se via,
De toldos adornada, e leda de arte
Que bem mostra estimar o santo dia.
Treme a bandeira, voa o estandarte,
A cor purpúrea ao longe aparecia;
Soam os atambores o pandeiros,
E assim entravam ledos e guerreiros.

74
Enche-se toda a praia Melindana
Da gente que vem ver a leda armada,
Gente mais verdadeira, e mais humana,
Que toda a doutra terra atrás deixada.
Surge diante a frota Lusitana,
Pega no fundo a âncora pesada;
Mandam fora um dos Mouros que tomaram,
Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

75
O Rei, que já sabia da nobreza
Que tanto os Portugueses engrandece,
Tomarem o seu porto tanto preza,
Quanto a gente fortíssima merece:
E com verdadeiro ânimo e pureza,
Que os peitos generosos enobrece,
Lhe manda rogar muito que saíssem,
Para que de seus reinos se servissem.

76
São oferecimentos verdadeiros,
E palavras sinceras, não dobradas,
As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,
Que tanto mar e terras tem passadas.
Manda-lhe mais lanígeros carneiros,
E galinhas domésticas cevadas,
Com as frutas, que então na terra havia;
E a vontade à dádiva excedia.

77
Recebe o Capitão alegremente
O mensageiro ledo e seu recado;
E logo manda ao Rei outro presente,
Que de longe trazia aparelhado:
Escarlata purpúrea, cor ardente,
O ramoso coral, fino e prezado,
Que debaixo das águas mole cresce,
E como é fora delas se endurece.

78
Manda mais um, na prática elegante,
Que co'o Rei nobre as pazes concertasse,
E que de não sair naquele instante
De suas naus em terra o desculpasse.
Partido assim o embaixador prestante,
Como na terra ao Rei se apresentasse,
Com estilo que Palas lhe ensinava,
Estas palavras tais falando orava:

79
"Sublime Rei, a quem do Olimpo puro
Foi da suma Justiça concedido
Refrear o soberbo povo duro,
Não menos dele amado, que temido:
Como porto mui forte e mui seguro,
De todo o Oriente conhecido,
Te vimos a buscar, para que achemos
Em ti o remédio certo que queremos.

80
"Não somos roubadores, que passando
Pelas fracas cidades descuidadas,
A ferro e a fogo as gentes vão matando,
Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;
Mas da soberba Europa navegando,
Imos buscando as terras apartadas
Da Índia grande e rica, por mandado
De um Rei que temos, alto e sublimado.

81
"Que geração tão dura há hi de gente,
Que bárbaro costume e usança feia,
Que não vedem os portos tão somente,
Mas inda o hospício da deserta areia?
Que má tenção, que peito em nós se sente,
Que de tão pouca gente se arreceia?
Que com laços armados, tão fingidos,
Nos ordenassem ver-nos destruídos?

82
"Mas tu, e quem mui certo confiamos
Achar-se mais verdade, ó Rei benigno,
E aquela certa ajuda em ti esperamos,
Que teve o perdido Ítaco em Alcino,
A teu porto seguro navegamos,
Conduzidos do intérprete divino;
Que, pois a ti nos manda, está mui claro,
Que és de peito sincero, humano e raro.

83
"E não cuides, ó Rei, que não saísse
O nosso Capitão esclarecido
A ver-te, ou a servir-te, porque visse
Ou suspeitasse em ti peito fingido:
Mas saberás que o fez, porque cumprisse
O regimento, em tudo obedecido,
De seu Rei, que lhe manda que não saia,
Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

84
"E porque é, de vassalos o exercício,
Que os membros tem regidos da cabeça,
Não quererás, pois tens de Rei o ofício,
Que ninguém a seu Rei desobedeça;
Mas as mercês e o grande benefício,
Que ora acha em ti, promete que conheça
Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,
Enquanto os rios para o mar correrem."

85
Assim dizia; e todos juntamente,
Uns com outros em prática falando,
Louvavam muito o estâmago da gente,
Que tantos céus e mares vai passando.
E o Rei ilustre, o peito obediente
Dos Portugueses na alma imaginando,
Tinha por valor grande e mui subido
O do Rei que é tão longe obedecido.

86
E com risonha vista e ledo aspeito,
Responde ao embaixador, que tanto estima:
"Toda a suspeita má tirai do peito,
Nenhum frio temor em vós se imprima;
Que vosso preço e obras são de jeito
Para vos ter o mundo em muita estima;
E quem vos fez molesto tratamento,
Não pode ter subido pensamento.

87
"De não sair em terra toda a gente,
Por observar a usada preminência,
Ainda que me pese estranhamente,
Em muito tenho a muita obediência;
Mas, se lho o regimento não consente,
Nem eu consentirei que a excelência
De peitos tão leais em si desfaça,
Só porque a meu desejo satisfaça.

88
"Porém, como a luz crástina chegada
Ao mundo for, em minhas almadias
Eu irei visitar a forte armada,
Que ver tanto desejo, há tantos dias;
E se vier do mar desbaratada,
Do furioso vento e longas vias,
Aqui terá, de limpos pensamentos,
Piloto, munições e mantimentos."

89
Isto disse; e nas águas se escondia
O filho de Latona; e o mensageiro
Coa embaixada alegre se partia
Para a frota, no seu batel ligeiro.
Enchem-se os peitos todos de alegria.
Por terem o remédio verdadeiro
Para acharem a terra que buscavam;
E assim ledos a noite festejavam.

90
Não faltam ali os raios de artifício,
Os trêmulos cometas imitando;
Fazem os bombardeiros seu ofício,
O céu, a terra e as ondas atroando.
Mostra-se dos Ciclopas o exercício
Nas bombas que de fogo estão queimando;
Outros com vozes, com que o céu feriam,
Instrumentos altíssonos tangiam.

91
Respondem-lhe da terra juntamente,
Co'o raio volteando, com zunido;
Anda em giros no ar a roda ardente,
Estoura o pó sulfúreo escondido.
A grita se alevanta ao céu, da gente;
O mar se via em fogos acendido,
E não menos a terra; e assim festeja
Um ao outro, a maneira de peleja.

92
Mas já o Céu inquieto revolvendo,
As gentes incitava a seu trabalho,
E já a mãe de Menon a luz trazendo,
Ao sono longo punha certo atalho;
Iam-se as sombras lentas desfazendo,
Sobre as flores da terra em frio orvalho,
Quando o Rei Melindano se embarcava


 


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